terça-feira, 28 de maio de 2013

O espelho sujo

Era um vendedor de flores que tinha como profissão ser viúvo de uma esposa que não morreu. Combinação incrivelmente dolorosa para se conviver. Todos os dias os mais diversos casais entravam e saiam de sua loja. Sempre sorridentes, sempre alegres, com aquela inocência e esperança que apenas casais recém formados apresentam.

Compravam chocolates, pequenos bonequinhos de casais ( os casais de sapo faziam especial sucesso na sua cidade) e outras obras. Mas o que realmente ele fazia bem eram arranjos de flores, afinal todos os dias criava um novo para a falecida que ainda vive. Fazia isso pelo pleno prazer de simplesmente ver o sorriso em seu rosto cada vez que era surpreendida por um novo presente.

Um belo dia no entanto, não houve sorriso, não houve ramalhete, morreu a esperança. Ela não estava mais lá, fugira com um novo amor. Pelo menos é isso que se conta, já que desde então ele nunca mais havia dito uma palavra. Entretanto um certo dia chuvoso, já perto do final do expediente, uma moça entrou em sua loja. Percorreu a loja inteira, parou diante de uma rosa e chorou. Chorou copiosamente todas a palavras e mágoas que nunca ousara falar.

Olhou pra trás então, e, apesar olhando para o vendedor de flores, percebeu que eram iguais. Cascas vazias sem alma que escolheram nunca se recuperar do mal que os afligiu. Foi embora sem dizer uma palavra sobre o que sentiu. Passou a voltar naquelas lojas todos os dias.

Até que um dia trouxe junto de sua presença uma foto. Uma foto de ela, radiante, de um modo que parecia estar dançando. A graça de sua imagem preencheu os pulmões do abatido vendedor de flores, de uma maneira tão violenta que foi obrigado a dizer:

-Gostaria muito de dançar com você.
-Mas eu não sei dançar.
-Eu te ensino.

Antes de ouvir a resposta ele correu para buscar sua vitrola no quarto dos fundos. Ao voltar não houve sorriso, não houve ramalhete, morreu a esperança. Ela não estava mais lá. Mas dessa vez o amor havia deixado um recado.

"Quero dançar com você
se até lá estiver namorando
digo a sua namorada
eu te amo".

Ficou feliz, seria aquela então a flor que o vendedor de flores sempre esperou receber. Desde então todos os dias ele aguardava aquela mulher, a volta da dançarina. O tempo passou e ele nunca mais a viu. Um dia então, resolveu limpar o espelho, e com ele limpar o restante de esperança que tinha de um amor correspondido. Chegando perto do objeto, percebeu que um pedaço de pano havia grudado na tinta que a moça utilizara para pintar o recado. Retirando esse pedaço de pano, finalmente entendeu a mensagem.

"Quero dançar com você
se até lá estiver namorando
diga a sua namorada
eu te amo."

Frase do dia:

"Acordei e me olhei no espelho, ainda a tempo de ver meu sonho virar pesadelo"
 

Paulo Leminski

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Sobre navios e botes.

Sempre sonhei em ir para Paradise. Trabalhei minha vida inteira para isso, estudei vários anos, cursei dois cursos superiores, criei toda a infraestrutura pessoal necessária para fazer a viagem. Nesse tempo todo, só estava aguardando uma companhia para poder realizar essa jornada. Quando consegui, conversei, a conheci e procurei fazer de tudo para que a viagem desse certo.

Entramos no nosso navio, o SS Beziehung, e tivemos um translado tranquilo por aproximadamente três anos. Conhecemos lugares, passeamos pelo mundo, fizemos planos, olhamos as estrelas. Eu sentia pela primeira vez na vida que estava próximo de chegar, e que o navio em que estava pela primeira vez tinha um rumo certo, um local de chegada.

Um certo dia, porém, senti um forte baque. O navio havia atingido alguns rochedos no mar, apenas de leve, não o suficiente para afundar, mas que seriam necessárias providências para consertar tudo. Ela me pediu ajuda pra consertar o navio, eu aceitei e fui para a ponte de comando tentar manobrar. Foi quando senti o segundo baque.

Ela havia ligado os motores e o Navio adentrado ainda mais nas rochas do local. Dessa vez não havia mais salvação para a embarcação. Olhei pela vidraça, por tempo apenas o suficiente para vê-la fugindo no penúltimo salva vidas, com um tipo grandão. Fiquei observando aquela cena incrédulo. Ela sequer olhou pra traz para demonstrar qualquer preocupação.

Afundei antes do navio. Pensei que o melhor seria morrer ali, como o capitão de mais uma tentativa de viagem fracassada. Já tinha tentado chegar em Paradise antes, e tinha sido abandonado pela companheira de viagem, sem qualquer aviso. Mas sabe-se lá por qual motivo, lutei!

Nadei para fora da ponte de comando e em direção a superfície, percebendo ao emergir que um pequeno bote, o Hoffnung. Consegui apenas me agarrar a sua frágil estrutura, que estava a beira de afundar também. Subi a bordo, e desmaiei.

Por um bom tempo não sabia se estava vivo ou morto, acreditava que estava vivo pois ainda sentia minha vida passando ao meu lado. Só que dessa vez o bote ia sem direção, errante, e via meus sonhos e oportunidades passarem e se afastarem cada vez mais.

Acordei, a deriva. Nenhum sinal de melhora por perto, nada que me fizesse ter esperança. Alguns navios passavam perto, e Deus sabe o quanto tentei sair dessa situação. Tentei por diversas vezes lançar sinalizadores para chamar atenção de outra embarcações que ali passavam, sem sucesso.

Tentei melhorar a potencia do sinalizador, criando um que era praticamente uma obra de arte, que seria um marco na história dos sinalizadores. O lancei, o navio sequer esboçou reação. Não o culpo, não são todos que se interessam sobre histórias de náufragos. Como o tempo, sobrou apenas um sinalizador no bote, e sinceramente, tenho medo de usá-lo e não dar em nada. Na verdade, não sei se tenho muita esperança de melhora.

De toda forma, se de alguma forma esse texto chegou a você, peço que guarde minha história, do homem que chegou incrivelmente perto de Paradise, mas que morreu bem antes de chegar a praia.

Frase do Dia:
"A vida é um naufrágio, mas não devemos esquecer de cantar nos botes salva-vidas."
Voltaire

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Receita para o Fracasso em dois passos simples.

passo 1 - Você escreve um texto sobre uma pessoa. Todos acham maravilhoso, lindo, romântico, apaixonante. Alguns até mandam para seus respectivos namorados e namoradas e as namoradas e os namorados acham incrível também.

passo 2 - Você manda para a pessoa que inspirou o texto. Ela não dá a mínima.

Frase do Dia:

"O sucesso torna as pessoas modestas, amigáveis e tolerantes; é o fracasso que as faz ásperas e ruins."

William Maugham

sábado, 26 de janeiro de 2013

O telefonema

Muito antes de existir Tim, Infinity.
Muito antes de eu ter um celular
Muito antes de eu viajar sozinho
Muito antes de passar o aniversário longe de minha família

Muito antes de achar quem eu acreditava ser a mulher certa
Muito antes de pensar em casar
Muito antes de experimentar a felicidade
Muito antes de sentir saudade

Muito antes de crescer
Muito antes de trabalhar
Muito antes do meu cabelo cair.

Eu te conheci
Eu te liguei
 e Você ficou tão feliz que perdeu a voz

Frase do dia:

"Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios."

Clarice Lispector.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Soneto elogioso

Carente grudento
Culpado por tudo de ruim que acontece a você
Quanto ainda falta para entender
Que és mal quisto pelo chefe do firmamento?

Ela virava a cara
e pedia para se afastar
Você virava a cara
e carinhosamente começava a beijar

Não importa a escada
não importa a bancada
o fim é sempre triste

Não importa a força
Não importa a forca
Só importa a espera pelo styx.

Frase do Dia:

"Não te irrites se te pagarem mal um benefício; antes cair das nuvens que de um terceiro andar."

Machado de Assis